sábado, maio 25, 2013

Lydia Davis, Man Booker International Prize 2013: o reconhecimento da diferença, do desconcertante, da não linearidade da escrita



Lydia Davis quando era mais jovem e tinha uns olhos claros muito invasivos


Lydia Davis nasceu nos Estados Unidos em 1947. Está quase a fazer 66 anos e vive em Nova Iorque. É tradutora, ensaista e, sobretudo, novelista. Isto de dizer que é sobretudo novelista deve-se a ter sido por esta sua faceta, pelos seus peculiares pequenos contos, que ganhou o Man Booker International Prize 2013.

Devo dizer que acho o que ela escreve muito desconcertante. Por vezes são pequenas histórias mas, a maioria, são apontamentos, aforismos, ou coisas meio poéticas, ou piadas, ou, simplesmente, doideiras. É a anti-erudita por excelência. Ou melhor, até pode ser que seja erudita mas disfarça muito bem. Não sei definir melhor. Acho que nem faz sentido tentar definir. Só estou aqui a puxar pela cabeça para escrever isto para tentar que, quem nunca tenha lido nada dela, possa ficar com uma ideia.

O livro que tenho aqui comigo e que tem mais de 600 páginas é daqueles livros que abro, leio umas páginas, salteio, aterro onde aterrar, leio um pouco mais. Fecho. Tempo depois repito. Tenho sempre curiosidade em perceber o que vai sair dali. Talvez seja esse o seu maior mérito: a imprevisibilidade. Escuso de dizer que gosto pois a mim atrai-me sempre o que é assim, diferente, inesperado - e bem escrito.

Na juventude, Lydia foi casada durante quatro anos com Paul Auster, de quem tem um filho. Não foi coisa que tivesse corrido bem. Passaram a dar-se melhor depois de terem acabado a relação. Ambos partiram para outra, vieram novos filhos, a vida seguiu e seguiu bem.

Paul Auster fala do conturbado breve período em que foram casados no seu livro de memórias, Diário de Inverno. Transcrevo um pouco. Não se espantem com a forma como Auster se exprime - como o Jorge Jesus ou o Ronaldo também se exprimem (hi.... a heresia que estou a escrever...), quando falando deles próprios, dizem 'tu foste' em vez de dizerem 'eu fui'. Enfim. Conhecessem eles este livro e já poderiam dizer, todos armados em eruditos, que, ao falarem, adoptam 'o estilo Paul Auster' - a ver se mais alguém gozava com eles...:).



Paul Auster quando era mais novo
(e quase gémeo separado à nascença do Cunhal em novo, especialmente nos olhos)


No dia 6 de Outubro de 1974, cerca de dois meses do teu regresso, casaste-te com a tua namorada. Uma pequena cerimónia realizada no teu apartamento, seguida de uma festa oferecida por um amigo que vivia perto de ti, um apartamento muito maior do que o teu. Considerando as frequentes mudanças de opinião que desde o início vos afligiram, as constantes vindas e idas, os casos com outras pessoas, os rompimentos e reatamentos que se sucediam com a regularidade das mudanças de estação, a ideia de que qualquer de vocês tenha admitido casar-se parece-te agora fruto de um capricho delirante. No mínimo estavam a correr um risco enorme, pondo em jogo a vossa amizade e as vossas ambições literárias, para transformar o casamento em algo diferente do que já tinham experimentado juntos, mas perderam a aposta, ambos a perderam porque estavam condenados a perdê-la, e por isso só conseguiram que durasse quatro anos, casando em outubro de 1974 e separando-se em novembro de 1978. Ambos tinham vinte e sete anos quando deram o nó, idade suficiente para saberem o que vos esperava, mas ao mesmo tempo nenhum de vocês era nada que se parecesse com um adulto, no fundo continuavam a ser dois adolescentes, e a verdade nua e crua era que não tinham a mínima hipóteses.



Pintura de Edward Hopper -
que retrata bem o ambiente descrito acima, no texto de Auster, e em alguns  textos de Lydia Davis


A palavra escrita, então, a Lydia Davis:

O Outro

Ela muda qualquer em casa para aborrecer o outro, e o outro aborrece-se e torna a mudá-la, e ela muda outra coisa da casa para aborrecer o outro, e o outro aborrece-se e torna a mudá-la, e então ela conta a outras pessoas o que se passa, e as outras pessoas acham graça, mas o outro também ouve e não acha graça nenhuma, mas nada pode fazer para o mudar.



Mulher olhando a rua pela janela - ainda a pintura de Edward Hopper


Um estranho impulso


Olhei da minha janela lá para baixo, para a rua. O sol brilhava e os lojistas tinham saído para apanhar sol e ficarem a ver as pessoas a passar. Mas porque é que os lojistas tapavam os ouvidos? E porque é que as pessoas lá na rua corriam como se fossem perseguidas por um terrível espectro? Logo tudo voltou ao normal: o incidente não fora mais do que um momento de loucura durante o qual as pessoas não conseguiam suportar a frustração das suas vidas e cederam a um impulso estranho.


E, agora, a palavra dita por Lydia Davis que, para além de escrever, é também professora de escrita criativa (e que é Membro da American Academy of Arts and Sciences e que, para além deste prémio, já recebeu inúmeros outros).




***

Ambos os pequenos contos de Lydia Davis acima transcritos fazem parte do livro 'Contos Completos' da Relógio d'Água numa tradução de Miguel Serras Pereira e Manuel Resende.

Abaixo, no post a seguir a este, há um vídeo muito divertido e, não é para assustar, mas deve merecer alguma reflexão por parte de quem se prepara para dar uma facadinha no matrimónio, que o que aconteceu àquele pode acontecer a qualquer um. Imagine que a coisa se passa num 9º andar, por exemplo...


***

E, por hoje, nada mais. tenham, meus Caros Leitores, um belo fim de semana!

4 comentários:

  1. Aprecio mais o episódio da espinha na garganta, descrito por Lydia Davis em «Contos Completos», do que a da vítima em «Diário de Inverno». Aliás, este será o único título do autor que vou conservar à mão e encaixotar os outros para ganhar espaço na estante.
    Boas ginjas, com ou sem elas ;)

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  2. Fallorca, olá!

    Sabe que andei à procura dessa 'cena' para a transcrever aqui mas não a consegui descobrir? Ainda agora andei a folhear, tentei pelo índice, mas não a descubro... Tenho que ter mais paciência e procurar melhor.

    Mas acha que aquela descrição do Auster a põe como vítima...? Não vejo assim. Desentendiam-se a toda a hora até que resolveram interromper a relação e ir cada um á sua vida. Não tem mal. (Aliás, tem - tem razão. Destas coisas não se sai sem alguma dor).

    Acho graça ao que diz do Auster. Apesar da fama que o rodeia, nunca fui muito à bola com ele. Este livro é o que ainda tolero melhor.

    Um bom fim de semana para si! Quanto às ginjas... eu sou mais nêsperas... (pelo menos espero que os pássaros ainda não mas tenham comido todas)

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  3. É indiscutível que o olhar de Paul Auster é muito mais significativo do que o uso da "segunda pessoa em lugar da primeira".
    :)

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  4. «...aquela descrição do Auster a põe como vítima». Calma, há aqui um equívoco; quem se engasgou com uma espinha (a vítima) foi o Auster.
    Se por nésperas se refere às de cá do quintal, pardais, melros e até abelharucos, acabaram com elas... Agora, esperam(os) pelos figos lampos

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