Durante algum tempo trabalhei perto de um senhor de idade que tinha uma pequena loja de velharias. Não era um antiquário: não, era mesmo aquilo a que se chama ferro-velho. A loja era pequena e escura, cheirava a mofo, e lá dentro mal se podia andar: cadeiras ao monte, candeeiros no chão, gavetas em cima umas das outras cheias de tralha. Uma confusão. Mas o que eu gostava de por ali andar...
Comprei lá algumas coisas mas era sempre uma odisseia: o senhor nunca sabia o preço; procurava papéis em gavetas, em molhos de papéis sujos, tentando saber quando tinha dado pelas peças e, depois de muito revolver, invariavelmente, fazia um preço a olho.
Uma das coisas que lá comprei foi o espelho abaixo, que acho muito bonito, lacado, em verde-água. Em que casa terá ele estado antes? Alguém o escolheu, alguém o colocou numa parede, centrando-o, harmonioso no contexto em que se inseria, um quarto talvez ou uma sala, talvez sobre uma lareira - e alguém, antes de mim, se viu nele.
Numa outra vez descobri umas gavetas ainda com objectos pessoais. O senhor explicou-me que acontece muito, os herdeiros não têm onde colocar as coisas, não têm tempo nem paciência para estar a escolher esses restos de uma vida, nada daquilo lhes diz o que quer que seja. E, então, desfazem-se das coisas de qualquer maneira.
Nesse dia trouxe uma caixinha muito bonita, metálica, com um recorte na tampa e um baralho de cartas lá dentro.
Mas trouxe uma outra preciosidade, um leque de madeira.
O meu leque com uma fitinha de cetim encarnado |
Nas pequenas tabuinhas estão desenhos, dedicatórias, poemas, em português, francês, alemão e italiano.
Vejo que a dona era uma senhora que usou este leque entre 1891 e 1892 e que andou entre Matosinhos e Lisboa.
Vejo nomes em diferentes caligrafias, algumas parecem assinaturas, outras simples identificações: Francisco de Paula Ferreira e Mendes(?), Th. Gautier, A. de Musset, Adelaide Cecília - não consigo perceber algumas palavras.
Pela repetição do nome e pela forma como aparece caligrafado junto aos pequenos desenhos, sou levada a deduzir que este meu estimado leque terá pertencido a E. de Labourdonnay Roque.
Gostava de saber como era esta mulher. Terá escondido parte do rosto, em jogos de sedução? Quando passeava entre Mattosinhos e Lisbonne (tal como vejo nas dedicatórias), pediria aos seus amigos e admiradores para lhe escreverem um poema?
Nas tardes de verão, sentada no fresco do salão, pintava flores mimosas, delicadas libelinhas e provavelmente abanava-se prazenteira e sorria, lendo os versos que os amigos ali tinham escrito, com gentil caligrafia, com elegantes canetas de aparo.
Mas é isto: tal como o homem mais importante do mundo, que ao ressuscitar 7 dias depois de ter morrido, não consegue arranjar emprego nem como porteiro (Brecht dixit), também os bens mais queridos, mais valiosos, que justificaram toda uma existência, perdem toda a importância no dia que se segue ao desaparecimento do seu dono.
E é assim que estes objectos tão pessoais - o leque que uma mulher encostou aos seios, ao rosto, o espelho em que se mirou, revolteando vaidosa - acabaram no chão sujo de uma loja escura. Felizmente consegui resgatá-los e hoje mantenho-os com carinho, como uma forma de manter viva a memória de alguém que viveu um século antes de mim, alguém de quem nada sei.
Nesses tempos longínquos E. de Labourdonnay (Elisa?, Elizabeth?) leu várias vezes o que, um dia, alguém lhe escreveu: "Aimer c'est comprendre le bonheur/ Etre aimé, c'est le posséder".
Assim a imagino: bela, feliz, coquette, culta, inteligente, amada, eticamente decente.
E, por ela, mantenho bem resguardado o seu leque que, de vez em quando, seguro entre as minhas mãos.
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