quarta-feira, janeiro 26, 2011

Despojos: a irrelevância do que se tem - e o carinho que sinto por esses objectos que alguém, um dia, amou

Durante algum tempo trabalhei perto de um senhor de idade que tinha uma pequena loja de velharias. Não era um antiquário: não, era mesmo aquilo a que se chama ferro-velho. A loja era pequena e escura, cheirava a mofo, e lá dentro mal se podia andar: cadeiras ao monte, candeeiros no chão, gavetas em cima umas das outras cheias de tralha. Uma confusão. Mas o que eu gostava de por ali andar...

Comprei lá algumas coisas mas era sempre uma odisseia: o senhor nunca sabia o preço; procurava papéis em gavetas, em molhos de papéis sujos, tentando saber quando tinha dado pelas peças e, depois de muito revolver, invariavelmente, fazia um preço a olho.

Uma das coisas que lá comprei foi o espelho abaixo, que acho muito bonito, lacado, em verde-água. Em que casa terá ele estado antes? Alguém o escolheu, alguém o colocou numa parede, centrando-o, harmonioso no contexto em que se inseria, um quarto talvez ou uma sala, talvez sobre uma lareira - e alguém, antes de mim, se viu nele.


Numa outra vez descobri umas gavetas ainda com objectos pessoais. O senhor explicou-me que acontece muito, os herdeiros não têm onde colocar as coisas, não têm tempo nem paciência para estar a escolher esses restos de uma vida, nada daquilo lhes diz o que quer que seja. E, então, desfazem-se das coisas de qualquer maneira.

Nesse dia trouxe uma caixinha muito bonita, metálica, com um recorte na tampa e um baralho de cartas lá dentro.

Mas trouxe uma outra preciosidade, um leque de madeira.

O meu leque com uma fitinha de cetim encarnado

Nas pequenas tabuinhas estão desenhos, dedicatórias, poemas, em português, francês, alemão e italiano.

Vejo que a dona era uma senhora que usou este leque entre 1891 e 1892 e que andou entre Matosinhos e Lisboa.  

Vejo nomes em diferentes caligrafias, algumas parecem assinaturas, outras simples identificações: Francisco de Paula Ferreira e Mendes(?), Th. Gautier, A. de Musset, Adelaide Cecília - não consigo perceber algumas palavras.

Pela repetição do nome e pela forma como aparece caligrafado junto aos pequenos desenhos, sou levada a deduzir que este meu estimado leque terá pertencido a E. de Labourdonnay Roque.

Gostava de saber como era esta mulher. Terá escondido parte do rosto, em jogos de sedução? Quando passeava entre Mattosinhos e Lisbonne (tal como vejo nas dedicatórias), pediria aos seus amigos e admiradores para lhe escreverem um poema?

Nas tardes de verão, sentada no fresco do salão, pintava flores mimosas, delicadas libelinhas e provavelmente abanava-se prazenteira e sorria, lendo os versos que os amigos ali tinham escrito, com gentil caligrafia, com elegantes canetas de aparo.

Mas é isto: tal como o homem mais importante do mundo, que ao ressuscitar 7 dias depois de ter morrido, não consegue arranjar emprego nem como porteiro (Brecht dixit), também os bens mais queridos, mais valiosos, que justificaram toda uma existência, perdem toda a importância no dia que se segue ao desaparecimento do seu dono.

E é assim que estes objectos tão pessoais - o leque que uma mulher encostou aos seios, ao rosto, o espelho em que se mirou, revolteando vaidosa - acabaram no chão sujo de uma loja escura. Felizmente consegui resgatá-los e hoje mantenho-os com carinho, como uma forma de manter viva a memória de alguém que viveu um século antes de mim, alguém de quem nada sei.

Nesses tempos longínquos E. de Labourdonnay (Elisa?, Elizabeth?) leu várias vezes o que, um dia, alguém lhe escreveu: "Aimer c'est comprendre le bonheur/ Etre aimé, c'est le posséder".

Assim a imagino: bela, feliz, coquette, culta, inteligente, amada, eticamente decente.

E, por ela, mantenho bem resguardado o seu leque que, de vez em quando, seguro entre as minhas mãos.

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